sábado, 22 de agosto de 2009

Bicho (Série: Uma Foto por um Conto)



A vida mudou muito quando a fábrica chegou. Antes todo mundo se conhecia, se cumprimentava e se entendia como bons vizinhos. No início, a vinda da fábrica foi até bem vista. Traria renda e ocupação para muitos moradores que já esgotavam o que ainda restava pra se fazer na cidade. Mas a fábrica trouxe mais do que isso, trouxe pompa e um povo da capital.

Finalmente, a pequena cidade crescia e prosperava e Miguel acompanhava o bom momento. A sua quitanda passou a vender muito e logo virou um mercado respeitável. Miguel até reformou a casa e comprou um carro.

Para o bom quitandeiro tudo ia muito bem até a chegada de uma rede de Supermercados da capital. Supermercado é um lugar no qual se vende de tudo e, como uma erva daninha, não deixa coisa nenhuma crescer em volta. E acabou Miguel fechando as portas do seu respeitável mercado.

Depois que vendeu o carro para quitar as dívidas, sua vida começou a desmoronar. Marta havia se acostumado à fartura, não resistiu e foi morar na capital com um fotógrafo que tinha passado por lá para mostrar a fábrica numa revista. Foi uma paixão arrebatadora. Arrebatou o coração de Marta e metade do que restava dos bens de Miguel. Restou-lhe a boa companhia da cachaça.

Como os pobres diabos que beijam a sarjeta já não combinavam bem com a vida que se levava na cidade, Miguel passou de quitandeiro a uma praga, uma sarna, menos que um cachorro, um bêbado esmolambado. As distintas senhoras voltavam da igreja e o praguejavam, as crianças o cuspiam vez em quando.

Se ainda alguém conseguisse sentir um pingo de compaixão, esta luz se apagou quando Miguel passou a conversar com Traíra, um cão sarnento que dormia embaixo do banco da praça. Aquilo já era demais!

Um dia, porém, uma notícia correu a cidade: Miguel acertara no bicho três vezes seguidas. E em uma delas descolou um milhar na cabeça. Ferreira, comovido com a estranha sorte de seu compadre, carregou ele pelo braço do banco da praça até a sua casa:

- Vamos Miguel, você não pode ficar assim, compadre. Vou levá-lo à sua casa.

Fez um café forte, disse algumas palavras de apoio, aconselhou que arranjasse outra mulher que o merecesse, e chegou ao assunto que interessava:

- Vê-se que ainda é um homem de sorte. Deus está olhando por você. Esse negócio do bicho aí, por exemplo... Como é que se explica isso? - Ferreira deixou escapar uma faísca dos olhos.

- Ih, Ferreira... isso não foi sorte não, e muito menos Deus. Foi dica de Traíra. Aquele cachorro é danado de esperto!

- Como é que é, meu compadre? O cachorro te disse?

- Juro pela minha falecida mãe!

A mulher de Ferreira era Dona Neilza, a boca mais descontrolada e descontraída da cidade. Por isso mesmo, no outro dia o cachorro não teve sossego. Era só vagar o banco da praça, sentava-se alguém desconfiado, tentando se certificar de não haver outro por perto, tirava um naco de carne seca do bolso para atrair o pulguento e começar o interrogatório.

A noite, lá estava Ferreira arrastando o bêbado Miguel pelo braço até sua casa.

- Miguel, você precisa parar de beber. Veja por exemplo essa loucura de que cachorro fala. O povo já anda comentando. Podem querer até te jogar num hospício. O cachorro não fala nada, Miguel!

Muxoxou e respondeu com a língua embolada pela cachaça:

- Não fala nada com gente sóbria. Quanto mais eu bebo, mais o danado se desboca. Parece que é desses boêmios que respeita quem bebe e a quem não bebe não liga a mínima, acha que a prosa é sem alma.

Quando Ferreira deixou a casa, Miguel cuspiu o café amargo e gargalhou de chorar.

Na noite seguinte, chegou o vigário às quedas na igreja. Não fosse amparado pelo coroinha, se arrebentaria nas escadas do adro:

- Aquele desgraçado do Traíra é mesmo o cão, não é cachorro! Insiste só em falar com o bebum, xilado e corno do Miguel! Eu sou padre, puta que o pariu, mereço maior atenção!

OBs: Ando com o tempo curto para escrever.

3 comentários:

  1. É de um cachorro desses que eu preciso!

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  2. Ando sentindo ainda mais de perto que os supermercados continuam destruindo tudo em volta e antes de precisar de Traíra, sinto falta das nossas rodas, de caixa-prego, de coisas simples e de vocês!

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  3. Acabou? Volta! Volta! Volta!
    Beijo Pablo!
    SAudades dos MAurutto.

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