quinta-feira, 25 de junho de 2009

A Cor do Lugar (Série: Uma Foto por um Conto)


O Coronel Antunes ainda não havia se adaptado à situação. Aliás, nunca se adaptaria. Era fato consumado: os negros estavam no direito de livre escolha. A sua fazenda era uma das únicas que ainda tinha escravos quando a liberdade se fez lei. E ex-escravos vagavam nos arredores, consolidando os seus quilombos, que já tomavam ar de vilarejo.

O Coronel precisou recomeçar a vida da fazenda e decidiu que não ia dar um só tostão a nenhum negro metido a assalariado. Fez das suas terras um reduto de brancos, filhos dos portugueses mais puros que conseguiu reunir- ainda que seja este povo já tão miscigenado. De qualquer forma, os negros estavam renegados naqueles confins.

Na sede do município, a verdade já se fazia. Os negros com sua alforria, coloriam a cidade e aquilo dava a atacar a gastrite do Coronel. O colorido daquele povo, seus tecidos em azuis e amarelos vibrantes, colares de contas de todas as cores, sorrisos reluzentes em lábios vermelhos, cores vivas por toda a praça da matriz. Por conta daquela imagem, decidiu Antunes abolir da sua fazenda, a cor. Só era permitido o vermelho massapê e o verde canavial. Todas as outras coisas tinham que ser esmaecidas, como que vencidas pelo tempo, num eterno inverno rancoroso. Dizem que até o céu por lá ficou cinza ou de um azul desmaiado.

E assim viveu a fazenda, que virou povoado, vila, cidade. Nunca houve cores vivas por lá.

Sem que aquela gente se desse conta, a vida por ali foi mudando. Sem o vermelho, o laranja, o amarelo, sem o azul gritando e o lilás, o máximo que as pessoas que ali viviam conquistavam era um gostar muito morno de um pelo outro. A paixão foi morrendo aos poucos, e o amor se fez insosso entre o povo daquela pequena cidade.

Mas, um dia, Seu Eulálio descobriu a causa da angústia que a tanto tempo lhe assolava. Estava sofrendo porque ardia de paixão por Dona Catarina. O sentimento não cabia mais na paisagem contida e Seu Eulálio achou que ia explodir como uma partícula no vazio, ocupando, em pedaços, toda aquela atmosfera. A cidade sem cor não suportava a sua paixão radiante e poderia ser aquele o último dia de um amor eterno.

Chegou desconfiado, mas, decidido. Sentou-se como de costume ao lado de Catarina, suava frio como as cores da vida ao seu redor. Tirou de dentro do peito um maço de pétalas amassadas do que fora outrora uma rosa vermelha.

Ouviram-se tambores ressoarem na cidade naquela cândida tarde.


Obs: A foto foi tirada em Mato Grosso, distrito de Rio de Contas, na Chapada Diamantina-BA (uma cidade com cores vivas o suficiente, aliás). Na verdade, achei que fossem camaleões se escondendo de um entruso com uma máquina fotográfica.

Mas há um fundo de verdade no conto. Mato Grosso manteve por muitos anos seus descendentes sem relações com o povo quilombola de Barra e Bananal. O lugar se tornou um museu étnico vivo.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Apenas Fogo (Série: Uma Foto por um Conto)


Chegou no Rio de Janeiro no verão. Foi visitar uma tia.

Sinésio tinha pouca graça. Era baixo, um tanto desproporcional, mas naquela noite, num bar em Copacabana roubou um sorriso faceiro da cabrita mais formosa que já tinha deitado os olhos. Cabelo vermelho, mas vermelho mesmo daquele jeito, jamais tinha nem ouvido falar em Juazeiro.

Ainda de espírito acanhado pelo corno que levara de sua futura ex-mulher, Sinésio ficou sem jeito. Mas seu coração parecia um bode amarrado. Acabou sendo arrastado pelo olhar encapetado, aquela pele alva e aqueles cabelos vermelhos. E se perdeu Sinésio, na noite de Copacabana.

De manhã, pão com margarina molhado no café e uma cara de abestalhado, feliz como nunca:
- Minha tia Jurema, acho que vou morar aqui no Rio. Vou casar com uma moça que conheci aqui.
- Mas, Sinésio! Já não basta o corno de Juliana, você já vai se entregar pra uma moça assim de primeira noite? Ainda mais aqui do Rio!
- Minha tia, ela me ama, ela disse com todas as letras que mê-é-mé, a-mê-a-má!

Na tarde desde novo dia na vida de Sinésio, um passeio romântico ao Pão-de-Açúcar. O cabra da alma renovada e a moça do cabelo vermelho. Uma beleza aquele mar, aquilo tudo, aquela moça. Sinésio achou que estava no céu, abriu seu coração e pediu a ruiva em casamento.

- Puô cara, qualé? Pirou?
- Mas você disse que me amava!
- Puô cara, aê: era só fogo.

Sinésio, aperreado, olhou aquela imagem da moça ao sol e viu, num lampejo, seu cabelo de fogo lamber o Cristo Redentor. Perdido em beleza sem fim, passou-lhe a certeza da mensagem que havia recebido. Aquilo tudo era um chamado de Nosso Senhor.

Sentiu o vento frio no seu peito gelado, deixou o corpo pender e morreu consumido pelas chamas.


Fotografia tirada no Cristo Redentor, em janeiro de 2009 - a moça do cabelo vermelho é por mim desconhecida. Por Sinésio, tão pouco