terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Pelos Olhos (Série: Uma Foto por um Conto)


Tem umas coisas que acontecem nessa vida que por mais que a gente procure explicação não encontra em canto nenhum. E é aí mesmo que está a graça, é por isso mesmo que a vida é muito interessante de ser vivida. Assim, por si só, mesmo quando não vai bem das venturas, ainda é muito interessante.

É por causa dos desatinos da vida que existem santos, milagres, lobisomem, saci e Deus, por exemplo. E foi num desses descuidos da lógica e sonolência da razão que a vida de Matilde se transformou através de um fenômeno que se deu exatamente como agora vou contar.


As Visões de Matilde

Era uma casa velha, mas muito bem arrumada pelos caprichos de Dona Eulália, a mãe de 3 filhas: Matilde, Célia e Januária. A casa era suficiente para a família. Nem pequena nem grande. Só depois que Célia e Januária casaram é que ficou sobrando espaço. O quintal dos fundos era habitado pelo xodó da casa, Tirico, o papagaio. Matilde era justamente a irmã que menos gostava do bicho. Levara uma bicada na orelha que tirou-lhe um naco do lóbulo e lhe deixou um rancor pra vida toda.

A varanda da entrada da casa era o lugar predileto de Matilde, a irmã mais velha e única que ainda não havia casado. Era bem verdade que já estava noiva de Josué, dono da quitanda, e sem ainda ter marcado o casório, mais cedo ou mais tarde haveria de sair daquela casa, o que, aliás, estava lhe causando certa aflição. Mais por comodidade e preguiça do que por qualquer espécie de apego familiar.

Matilde era bem conformada com aquela vidinha que levava. Gostava mesmo era de ficar na cadeira de balanço da varanda, assistindo a vida da cidade. Gostava das bisbilhotices e mexericos maldosos que praticava com desenvoltura, era uma romancista da vida alheia.

Até que um dia, um estranho fenômeno transformou a vida de Matilde.

Na tarde morna, na modorra em que mergulhava na cadeira de balanço, Matilde teve uma visão estranha. Viu primeiro o quintal, depois um pote de semente de girassol, cocô de papagaio preso na grade do poleiro, viu os pés do papagaio e tornou a ver o quintal. Embora acordada, pensou ser um sonho estranho. Mas ficou estranho mesmo quando viu a sua mãe vindo em sua direção:

- Oh meu amor. Tá com sede né, a mamãe vai trazer água já pra você, meu xuxu.

Matilde levantou num pulo, correu pro quintal e viu com seus próprios olhos humanos Dona Eulália colocando água pra o papagaio Tirico no bebedouro.

- Diacho! Eu enxerguei pelos olhos do papagaio! Cruz credo!

Naquele dia, Matilde descobriu que tinha um dom e ainda não sabia se divino ou maldito. Ela podia tomar emprestados os olhos e ouvidos dos bichos. Ficou assustada, mas foi experimentando, exercitando aquela estranha habilidade.

Viu as coisas multiplicadas pelos olhos de uma mosca, ouviu com a acuidade dos cachorros, passou uma senana redescobrindo o mundo sem sair do seu quarto. E foi aí que começou a despertar a usura pelo poder de saber de tudo sobre todos da cidade. E foi quando se deu início a sua desgraça.

Pelos olhos de um camundongo que se fartava na quitanda de Josué, viu o safado paquerando a biscate da Selma, sua vizinha e amiga, quer dizer, ex-amiga, porque Selma retribuiu os galanteios com um sorriso. Um gato angorá assistiu encabulado as estripulias de Rosa, mulher do prefeito, com um fotógrafo estrangeiro que andava pela cidade. Um cachorro vagabundo descobriu Joaninha, filha do delegado, de safadeza atrás da igreja, com Onofre, o coroinha. Coronel Francisco, era fresco e fornicava com um peão da fazenda às vista de um gordo leitão. Doutor Carmildo, o prefeito corno, acertava suas parcelas das obras públicas e guardava tudo num cofre dentro do armário. Nem o vigário escapou, tinha revistas de sem-vergonhice embaixo da cama, segredo que só dividia com o seu canário-do-reino.

O espírito mexeriqueiro de Matilde jogou aquilo tudo aos sete ventos e escangalhou a pequena e pacata cidade de Aleluia.

E foi tamanho o aviltamento de todos os cidadãos, que a vida por ali se transformou completamente e todos começaram a perceber que ou davam as costas àquelas verdades, ou teriam que viver longe dali e reconstruir as suas histórias. Eram tantos os rabos presos que os mexericos acabaram. Todo mundo, num silencioso acordo, fez de conta que nada havia acontecido.

Alguns anos se passaram e a vida em Aleluia voltou a normalidade, mascarou-se novamente a moral daquele povo.

Para Matilde, o castigo foi cruel. Seu noivado acabou, todos os moradores de Aleluia afastaram-se temendo que lhes arrancassem mais algum segredo. Àquela altura já acreditavam se tratar de uma mulher com parte com o capeta. E nem mesmo as senhoras mais fofoqueiras que se encarregaram de disseminar as novidades descobertas por Matilde, passavam sequer por perto da casa avarandada da Rua Atalaia. Quando num inevitável encontro, era comum arrepiar-se ao olhar para a bruxa e vê-la na cadeira de balanço, com um sorriso torto, amarelo e um olhar de "eu sei de tudo". As próprias irmãs já a evitavam.

Um dia, o camundongo da quitanda, bisbilhotando a vida de Josué como já era de costume , não percebeu ao seu lado um gato enorme e gordo que saltou em sua direção. Matilde tentou sair, mas era tarde demais. O gato comera seus olhos.

Matilde nunca mais conseguiu ver coisa nenhuma. Agora está cega e solitária, ainda se balançando na varanda da velha casa de família.


Originalmente Publicada em 11/06/2009


A foto foi tirada em Jequié, interior da Bahia

6 comentários:

  1. Além de TUDOOOO, escreve bem! É demais esse menino! rs!

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  2. Foto e história. Conjunto perfeito!

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  3. Pablito,
    Você consegue, ao mesmo tempo, fazer a gente buscar a nossa mais pura verdade,
    como voar na nossa maior fantasia.
    Sou escancaradamente fã.
    Nunca pare...
    Bjs ao trio ( P,P,P )
    Anelise

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  4. Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
    Quero ver como suporta me ver tão feliz (pela luz dos olhos teus!)

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  5. Niño,

    Gostei bastante do texto, mas a foto, a foto é sensacional, quase dá para ver por dentro.

    ume beijo grande,

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