terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Pelos Olhos (Série: Uma Foto por um Conto)


Tem umas coisas que acontecem nessa vida que por mais que a gente procure explicação não encontra em canto nenhum. E é aí mesmo que está a graça, é por isso mesmo que a vida é muito interessante de ser vivida. Assim, por si só, mesmo quando não vai bem das venturas, ainda é muito interessante.

É por causa dos desatinos da vida que existem santos, milagres, lobisomem, saci e Deus, por exemplo. E foi num desses descuidos da lógica e sonolência da razão que a vida de Matilde se transformou através de um fenômeno que se deu exatamente como agora vou contar.


As Visões de Matilde

Era uma casa velha, mas muito bem arrumada pelos caprichos de Dona Eulália, a mãe de 3 filhas: Matilde, Célia e Januária. A casa era suficiente para a família. Nem pequena nem grande. Só depois que Célia e Januária casaram é que ficou sobrando espaço. O quintal dos fundos era habitado pelo xodó da casa, Tirico, o papagaio. Matilde era justamente a irmã que menos gostava do bicho. Levara uma bicada na orelha que tirou-lhe um naco do lóbulo e lhe deixou um rancor pra vida toda.

A varanda da entrada da casa era o lugar predileto de Matilde, a irmã mais velha e única que ainda não havia casado. Era bem verdade que já estava noiva de Josué, dono da quitanda, e sem ainda ter marcado o casório, mais cedo ou mais tarde haveria de sair daquela casa, o que, aliás, estava lhe causando certa aflição. Mais por comodidade e preguiça do que por qualquer espécie de apego familiar.

Matilde era bem conformada com aquela vidinha que levava. Gostava mesmo era de ficar na cadeira de balanço da varanda, assistindo a vida da cidade. Gostava das bisbilhotices e mexericos maldosos que praticava com desenvoltura, era uma romancista da vida alheia.

Até que um dia, um estranho fenômeno transformou a vida de Matilde.

Na tarde morna, na modorra em que mergulhava na cadeira de balanço, Matilde teve uma visão estranha. Viu primeiro o quintal, depois um pote de semente de girassol, cocô de papagaio preso na grade do poleiro, viu os pés do papagaio e tornou a ver o quintal. Embora acordada, pensou ser um sonho estranho. Mas ficou estranho mesmo quando viu a sua mãe vindo em sua direção:

- Oh meu amor. Tá com sede né, a mamãe vai trazer água já pra você, meu xuxu.

Matilde levantou num pulo, correu pro quintal e viu com seus próprios olhos humanos Dona Eulália colocando água pra o papagaio Tirico no bebedouro.

- Diacho! Eu enxerguei pelos olhos do papagaio! Cruz credo!

Naquele dia, Matilde descobriu que tinha um dom e ainda não sabia se divino ou maldito. Ela podia tomar emprestados os olhos e ouvidos dos bichos. Ficou assustada, mas foi experimentando, exercitando aquela estranha habilidade.

Viu as coisas multiplicadas pelos olhos de uma mosca, ouviu com a acuidade dos cachorros, passou uma senana redescobrindo o mundo sem sair do seu quarto. E foi aí que começou a despertar a usura pelo poder de saber de tudo sobre todos da cidade. E foi quando se deu início a sua desgraça.

Pelos olhos de um camundongo que se fartava na quitanda de Josué, viu o safado paquerando a biscate da Selma, sua vizinha e amiga, quer dizer, ex-amiga, porque Selma retribuiu os galanteios com um sorriso. Um gato angorá assistiu encabulado as estripulias de Rosa, mulher do prefeito, com um fotógrafo estrangeiro que andava pela cidade. Um cachorro vagabundo descobriu Joaninha, filha do delegado, de safadeza atrás da igreja, com Onofre, o coroinha. Coronel Francisco, era fresco e fornicava com um peão da fazenda às vista de um gordo leitão. Doutor Carmildo, o prefeito corno, acertava suas parcelas das obras públicas e guardava tudo num cofre dentro do armário. Nem o vigário escapou, tinha revistas de sem-vergonhice embaixo da cama, segredo que só dividia com o seu canário-do-reino.

O espírito mexeriqueiro de Matilde jogou aquilo tudo aos sete ventos e escangalhou a pequena e pacata cidade de Aleluia.

E foi tamanho o aviltamento de todos os cidadãos, que a vida por ali se transformou completamente e todos começaram a perceber que ou davam as costas àquelas verdades, ou teriam que viver longe dali e reconstruir as suas histórias. Eram tantos os rabos presos que os mexericos acabaram. Todo mundo, num silencioso acordo, fez de conta que nada havia acontecido.

Alguns anos se passaram e a vida em Aleluia voltou a normalidade, mascarou-se novamente a moral daquele povo.

Para Matilde, o castigo foi cruel. Seu noivado acabou, todos os moradores de Aleluia afastaram-se temendo que lhes arrancassem mais algum segredo. Àquela altura já acreditavam se tratar de uma mulher com parte com o capeta. E nem mesmo as senhoras mais fofoqueiras que se encarregaram de disseminar as novidades descobertas por Matilde, passavam sequer por perto da casa avarandada da Rua Atalaia. Quando num inevitável encontro, era comum arrepiar-se ao olhar para a bruxa e vê-la na cadeira de balanço, com um sorriso torto, amarelo e um olhar de "eu sei de tudo". As próprias irmãs já a evitavam.

Um dia, o camundongo da quitanda, bisbilhotando a vida de Josué como já era de costume , não percebeu ao seu lado um gato enorme e gordo que saltou em sua direção. Matilde tentou sair, mas era tarde demais. O gato comera seus olhos.

Matilde nunca mais conseguiu ver coisa nenhuma. Agora está cega e solitária, ainda se balançando na varanda da velha casa de família.


Originalmente Publicada em 11/06/2009


A foto foi tirada em Jequié, interior da Bahia

É tudo uma Questão de Coordenada (Série: Uma Foto por um Conto)


Kal-el nasceu em Krypton, um planeta de uma galáxia distante. Na hora de Krypton dar adeus à existência, ou melhor dizendo: morrer, que é fim comum a todas as coisas, inclusive aos planetas, ainda deu tempo de cuspir o menino dentro de uma cápsula. Vagou anos luz de distância e foi cair em Itaparica.

Seu Miguel, pescador, e Dona Antonia, marisqueira, acharam o negócio estranho esfumaçando e o menino bem branquinho dentro. Mesmo com a vida muito simples e acerbada, junto aos seis filhos homens, adotaram o moleque como o sétimo e o batizaram Malaquias.

O menino cresceu feliz entre os irmãos. Ninguém se importou muito com a visão de raio x, super força e com o fato de Malaquias voar. Apesar das estranhas diferenças, as outras crianças da ilha se davam bem com ele. Apenas o incomodava o apelido de Malaca Camarão. Sua pele alva, exposta ao sol escaldante de Itaparica, deixava o menino com uma cor vermelha de dar dó.

Aprendeu a ler com Dona Wilma, apaixonou-se pela professora de ciências, deu primeiro beijo na escola, conheceu o amor na Lavagem do Bêco com uma preta linda de Cacha-Prego. Virou pescador dos bons. Casou-se, teve três filhos normais. Foi avô de três meninas e dois meninos. Viveu muito bem até os oitenta e cinco anos, quando, com a super visão um pouco atordoada pela idade, tratou errado um baiacú e morreu envenenado de fel.

E o sétimo filho de seu Miguel passou assim pelo planeta terra. Nem lobisomem nem super-homem. Os bandidos continuam a solta, o mundo não rodou ao contrário, as catástrofes continuam dentro do seu curso natural, e Malaquias foi um cara feliz, lá da ilha de Itaparica.


Originalmente publicada em 16/06/2009
Observação sobre o tema:
Há aqui uma inspiração e homenagem ao filme "O Superoutro" de Edgar Navarro, que há anos atrás deu uma porretada na minha cabeça jovem e distraída.

A foto foi tirada em Itaparica, no cais.


O Menino e o Vento (Série: Uma Foto por um Conto)


José não era muito diferente dos outros meninos da sua pequena cidade, mas o fato de estar quase sempre distante e isolado justificava-se pela sua entrega às coisas que o fascinavam de forma incomum. Por tempo demais, se perdia em pensamentos vazios, quando seu olhar se fixava nos pequenos fenômenos que procurava entender. Passava horas observando uma folha seca dançando ao vento. O dia ficava curto e quase não dava para brincar com outras crianças.

Na escola, o seu rendimento não era dos melhores. Quando se concentrava em algo, nada mais entrava na sua cabeça. Sua atenção estava sempre nas coisas mais corriqueiras, o que o deixava distante nas aulas. A professora já havia alertado a mãe de José sobre uma possibilidade de uma certa doença chamada autismo. A mãe ficou preocupada e sua preocupação passou a uma certa agressividade quando tentava repreender o menino dos seus momentos de desligamento do mundo necessário.

A sua brincadeira preferida sempre foi empinar arraia. Empinava apenas quando não havia outra sequer no céu. Não queria disputar, e sim observar a rabada trepidante e a dança suave do pequeno retângulo de papel colorido resistindo à força do vento. Ao menos, aos olhos da sua mãe aquilo era uma brincadeira de criança normal.

O fascínio pelo vôo não era assunto sobre altitude, mas sobre o desafio de navegar no vento. Das aves, lhe seduzia o momento pairante, com asas imóveis, abertas a oferecer resistência ao ar e à gravidade.

De tanto observar o vento, José tornou-se seu companheiro. Passou a ouvi-lo e conversar com ele, falava sobre o seu dia, sobre tudo o que achava mais interessante, sobre as painas macias que saiam de um cacho da árvore de flores brancas na frente da sua escola. O Vento era o único que se interessava por seus assuntos voláteis.

Antenor, o pai de José trabalhava numa velha fábrica da região que produzia sabão com óleo de dendê. Era um homem duro, prático e muito trabalhador. Julgava que o dinheiro que colocava em casa era o suficiente para que a família o devolvesse servidão e respeito. O menino guardava um certo medo do pai.

A fábrica de sabão não ia bem e Antenor foi demitido. Neste dia, bebeu demais, chegou em casa viu José sozinho, perdido nas suas conversas com o vento. Resmungou alguma coisa, entrou com violência na cozinha e teve uma dura discussão que culminou em um soco na mulher. A partir desse dia, essas noites conturbadas se fizeram comuns. As surras se estenderam ao menino e à sua irmã mais velha.

Sua mãe, ainda que o amasse muito, acabava devolvendo a sua raiva na forma cada vez mais agressiva de lidar com sua estranha mania de conversar com o vento. Um dia, explodiu ao ver José sentado na cisterna, com um leve sorriso, olhando profundamente para o vazio do quintal. Aquilo não cabia na sua vidinha infeliz e ela não suportava mais aquela mania do menino de viver em um mundo mais perfeito que o dela. Bateu em José com força e raiva. O menino se encolheu e ficou assim até que a tarde caísse. Temeu a chegada do pai e resolveu que não ia mais apanhar.

José subiu no Morro do Paxá, onde ficava o reservatório da cidade e fez o que sempre soube possível por conhecer o Vento mais do que qualquer outro menino. Do ponto mais alto, enfim, voou, dançando no ar como uma arraia sem linha. Passou por cima da cidade e ainda pôde ouvir o pai pela última vez:

- José, volte aqui, seu desgraçado!

Originalmente Publicado em 11/07/2009


Obs: Na foto, Pedrinho, meu filho. Que também brinca com o vento, mas é feliz nos dois mundos.

terça-feira, 1 de março de 2011

Manual da Crítica à Música Baiana.


Hoje, ouvindo a BandNews, resolvi dar uma ajuda a meus amigos (especialmente aos jornalistas) da parte mais baixa do país a formular uma crítica correta da nossa música e nosso carnaval. Assim sendo, segue o manual básico:

01. É o Tchan, Parangolé (Tchubirabirón e Rebolation) NÃO são músicas de Axé. São os nossos pagodes, variantes do samba de roda, pai de todos os sambas;

02. Nem todas as músicas da Bahia são Axé;

03. Não dá pra atribuir qualidade à música por rótulo de estilo. Por exemplo, existe samba bom e samba ruim, rock bom e rock ruim. Gosto é outra coisa.

04. O Axé é uma linha musical pouco precisa, que se remete à música moderna de Carnaval da Bahia e, em geral, utiliza a base do Samba-Reggae, do Frevo e do Ijexá, mas que já tem variações enormes, graças ao poder de inventividade dos baianos;

05. Para quem gosta de rotular, pode carimbar como Axé algumas musicas, como: Zanzibar (A Cor do Som), Filha da Chiquita Bacana (Caetano), A Luz de Tieta (Caetano), Meia Lua Inteira (Caetano), Sol de Oslo (Gil);

06. Tom Zé, João Gilberto, Moraes Moreira, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Dorival Caymmi, Raul Seixas, são compositores. E acreditem, SÃO BAIANOS!!! O que nos faz pensar que a música que fazem é “música baiana”;

07. O Carnaval da Bahia não tem apenas trios elétricos tocando Rebolation. Também é possível ouvir Moraes Moreira, Pepeu Gomes, Armandinho (o baiano, não aquele de Santa Catarina!!!);

08. O Carnaval da Bahia também tem marchinhas, fanfarras, sambas, afoxés e até rock. Tem para todos os gostos. Inclusive um circuito no Pelourinho que é espetacular! E isso, antes mesmo dos cariocas redescobrirem as ruas, no carnaval que estava restrito às mesmices das escolas de Samba;

09. Prefiro mil Rebolations a um Bonde do Tigrão.

E atenção, aviso aos jornalistas cariocas:

Não fiquem com ciúmes. Um dia, talvez, Gilberto Gil e Bono Vox também poderão cantar juntos uma música de Bob Marley nas calçadas da magnífica Copacabana. Quem sabe.


Agora, por favor, não vá mais dar uma de BURRO CARNAVALESCO!

sábado, 22 de agosto de 2009

Bicho (Série: Uma Foto por um Conto)



A vida mudou muito quando a fábrica chegou. Antes todo mundo se conhecia, se cumprimentava e se entendia como bons vizinhos. No início, a vinda da fábrica foi até bem vista. Traria renda e ocupação para muitos moradores que já esgotavam o que ainda restava pra se fazer na cidade. Mas a fábrica trouxe mais do que isso, trouxe pompa e um povo da capital.

Finalmente, a pequena cidade crescia e prosperava e Miguel acompanhava o bom momento. A sua quitanda passou a vender muito e logo virou um mercado respeitável. Miguel até reformou a casa e comprou um carro.

Para o bom quitandeiro tudo ia muito bem até a chegada de uma rede de Supermercados da capital. Supermercado é um lugar no qual se vende de tudo e, como uma erva daninha, não deixa coisa nenhuma crescer em volta. E acabou Miguel fechando as portas do seu respeitável mercado.

Depois que vendeu o carro para quitar as dívidas, sua vida começou a desmoronar. Marta havia se acostumado à fartura, não resistiu e foi morar na capital com um fotógrafo que tinha passado por lá para mostrar a fábrica numa revista. Foi uma paixão arrebatadora. Arrebatou o coração de Marta e metade do que restava dos bens de Miguel. Restou-lhe a boa companhia da cachaça.

Como os pobres diabos que beijam a sarjeta já não combinavam bem com a vida que se levava na cidade, Miguel passou de quitandeiro a uma praga, uma sarna, menos que um cachorro, um bêbado esmolambado. As distintas senhoras voltavam da igreja e o praguejavam, as crianças o cuspiam vez em quando.

Se ainda alguém conseguisse sentir um pingo de compaixão, esta luz se apagou quando Miguel passou a conversar com Traíra, um cão sarnento que dormia embaixo do banco da praça. Aquilo já era demais!

Um dia, porém, uma notícia correu a cidade: Miguel acertara no bicho três vezes seguidas. E em uma delas descolou um milhar na cabeça. Ferreira, comovido com a estranha sorte de seu compadre, carregou ele pelo braço do banco da praça até a sua casa:

- Vamos Miguel, você não pode ficar assim, compadre. Vou levá-lo à sua casa.

Fez um café forte, disse algumas palavras de apoio, aconselhou que arranjasse outra mulher que o merecesse, e chegou ao assunto que interessava:

- Vê-se que ainda é um homem de sorte. Deus está olhando por você. Esse negócio do bicho aí, por exemplo... Como é que se explica isso? - Ferreira deixou escapar uma faísca dos olhos.

- Ih, Ferreira... isso não foi sorte não, e muito menos Deus. Foi dica de Traíra. Aquele cachorro é danado de esperto!

- Como é que é, meu compadre? O cachorro te disse?

- Juro pela minha falecida mãe!

A mulher de Ferreira era Dona Neilza, a boca mais descontrolada e descontraída da cidade. Por isso mesmo, no outro dia o cachorro não teve sossego. Era só vagar o banco da praça, sentava-se alguém desconfiado, tentando se certificar de não haver outro por perto, tirava um naco de carne seca do bolso para atrair o pulguento e começar o interrogatório.

A noite, lá estava Ferreira arrastando o bêbado Miguel pelo braço até sua casa.

- Miguel, você precisa parar de beber. Veja por exemplo essa loucura de que cachorro fala. O povo já anda comentando. Podem querer até te jogar num hospício. O cachorro não fala nada, Miguel!

Muxoxou e respondeu com a língua embolada pela cachaça:

- Não fala nada com gente sóbria. Quanto mais eu bebo, mais o danado se desboca. Parece que é desses boêmios que respeita quem bebe e a quem não bebe não liga a mínima, acha que a prosa é sem alma.

Quando Ferreira deixou a casa, Miguel cuspiu o café amargo e gargalhou de chorar.

Na noite seguinte, chegou o vigário às quedas na igreja. Não fosse amparado pelo coroinha, se arrebentaria nas escadas do adro:

- Aquele desgraçado do Traíra é mesmo o cão, não é cachorro! Insiste só em falar com o bebum, xilado e corno do Miguel! Eu sou padre, puta que o pariu, mereço maior atenção!

OBs: Ando com o tempo curto para escrever.

sábado, 8 de agosto de 2009

Futebol (Série: Uma Foto por um Conto)


Embora tivesse uma enorme dificuldade de negar um pedido do meu pai, meu avô jamais iria ceder aquela porção de terra para um reles campo de futebol. Por isso, resolveu inventar que ali era um lugar amaldiçoado, que aquele terreno, perto do Iguape, havia sido um cemitério de escravos.

A região é cheia de morros e encontrar uma área tão plana pra um campo com as dimensões profissionais era muito difícil. Ali era perfeito. O único campinho da vila dava pra seis de linha, e olhe lá!

Neneca, meu pai, aos 13 ou 14 anos insistiu muito, mas meu inexorável avô continuava com a história do cemitério pra meter medo e fazê-lo desistir. Tio Ceceu, o melhor amigo do meu pai, medroso como era, encasquetou com aquilo e disse que era melhor mesmo ficar sem campo de futebol. Deus o livrasse de ter que jogar bola sobre um lote de defuntos.

Eu não conheci bem o meu avô. Quando morreu, eu tinha apenas 6 anos e ainda morávamos na fazenda, o que manteve conservada a sua imagem nas minhas lembranças. Tudo o que eu vivi na Santa Inácia parece ter ficado gravado eu um filme na minha memória. É só eu desejar, que vejo o filme novamente. Mas eu quase nunca desejo.

Meu pai, ou Seu Neneca (como era conhecido na vila), assumiu a fazenda e resolveu realizar o velho sonho de fazer o campo de futebol no terreno do Iguape. Tio Ceceu fazia faculdade de medicina, mas ainda achava ser loucura jogar bola em terra de mortos. Preferia duvidar do meu pai, que dizia ser invenção do meu avô, do que do velho a quem ele sempre respeitou muito.

- Deixa de besteira, Ceceu! Acreditar nas sandices do meu pai!? Ele dizia isso pra nos fazer desistir do campo. Vais acabar virando um doutor bestão!

E Seu Neneca fez o campo e um campeonato inaugural, com a participação do prefeito, de oito times da região e da filarmônica da sede municipal. Foi uma festança.

O campo era um espetáculo. Meu olhos brilharam ao olhar a primeira vez para aquele retângulo verde cana, forrado de capim de burro, espraiado entre os morros e coroado pelo lagamar do Iguape, que ficava atrás do gol. Acho que naquele dia nasceu a minha persistente idéia de ser jogador de futebol. Dali por diante, passei mais tempo naquele campo do que dentro de casa. Virei um craque, entrei pra seleção da vila. Eu e Juninho, meu irmão caçula.

Meu pai nunca escondeu sua preferência por Juninho entre os 3 filhos. Talvez pelo fato de ser o caçula, ou talvez por ele ter carregado o seu nome. O velho Manoel era orgulhoso. E ainda que eu fosse muito melhor atacante do que Juninho era zagueiro, meu pai sempre dizia que o time só ganhava pela atuação dele. Eu tinha um certo ciúme, mas Juninho sempre fora um irmão tão carinhoso que eu acabava aproveitando os afagos do meu pai para também enchê-lo de elogios.

Dez anos depois da inauguração, chegamos a mais uma final de campeonato. Foi no dia 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, que é certeza de muita chuva. E, como era de se esperar, choveu. Choveu muito, mas o jogo se deu assim mesmo. No segundo tempo, zero a zero, um relâmpago fulminante fez Juninho cair. Um avanço do destino adversário que o nosso zagueiro não conseguiu parar.

Passei vinte anos sem falar com Tio Ceceu. Uma semana depois do relâmpago, ele me disse que o meu avô estava certo. Meu pai, não falou com mais ninguém. Morreu triste, pouco tempo depois, encolhido numa culpa apoiada em suposições fantasiosas de que nunca deveria ter feito aquele campo. A vila entendeu o recado e fez o que as vilas costumam fazer em situações como essas: criou um mito sobre o "campo maldito". E ninguém voltou a jogar ali, até hoje.

Neste mês, voltei à fazenda. Depois de um bom tempo morando na capital. Vim fazer um favor a Juninho e a Seu Neneca. Visitei Tio Ceceu, conversei com o velho, lembramos histórias do meu pai, rimos e tomamos cachaça. Contei-lhe dos meus planos de reativar o velho campo. Mandei construir arquibancadas de madeira e chamar o prefeito, a filarmônica e todo o povo para mais um campeonato de futebol.

Em uma pequena vila como aquela, os mitos são como traços da sua identidade e da sua história. Não cabe a mim contestar qualquer que seja, ainda que uma crendice. Mas aquele tinha um sabor amargo de derrota pra mim. E eu havia de aproveitar o descaso do tempo com a superstição pra resgatar a alegria da minha infância, da infância de Juninho, do meu pai e de todos que chutaram uma bola sobre aquele gramado.

Amanhã é o grande dia.

Obs: A foto foi tirada em Santiago do Iguape, um lugar absolutamente lindo.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Inveja (Série: Uma Foto por um Conto)


Eu e Jonahtan nascemos no mesmo dia. E acho que essa foi a única coisa que tivemos em comum.

No nome já somos muito diferentes. Chamo-me Mariosvaldo, um desses nomes híbridos dos desejos mal resolvidos dos pais. Jonahtan, chama-se Jonahtan, o que, em si, já é uma vitória esmagadora da personalidade dele sobre a minha. O nome dele é dos Estados Unidos, o meu é Mariosvaldo, de lugar nenhum.

Crescemos juntos, mas não proporcionais. Eu sempre fui mais baixinho e franzino e Jonahtan parece ter freqüentado academia desde o útero da sua mãe. Sempre teve o corpo bem definido, proporcional, com uma agilidade felina, rápido e elegante.

Eu até pensei que a vida devia equilibrar as pessoas dividindo um pouco as suas qualidades, e que, portanto, eu deveria ser melhor em matéria de inteligência. Mas me enganei. Na escola, as notas maiores eram dele. E todas as namoradinhas, por consequência.

Chamava tanto a atenção para si que, na cidade, a mim dirigiam-se:
-Aquele é o amigo de Jonahtan. - Melhor assim, eu não gostava mesmo do meu nome.

Desde garotos, íamos sempre à praia nos feriados. Enquanto eu torrava lambuzado de areia, o meu antonímico companheiro praticava capoeira em saltos espetaculares que chamavam a atenção das garotas. E foi assim que eu conheci, me apaixonei e perdi Lindaura.

Lindaura era um anjo. Eu a vi primeiro. Jonahtan nem a notou. Eu tropecei ao vê-la, ela riu, brincou comigo, conversamos, rimos juntos e ela viu apenas a mim no primeiro dia.

No segundo dia, nos reencontramos. Rimos, chupamos picolés, fizemos brincadeiras de jovens enamorados. Eu me sentia como se o mundo fosse mais seguro, como se eu tivesse toda a vida sob controle. E foi por isso que, na saída da praia, resolvi descontar todas as diferenças entre mim e Jonahtan em uma só tacada.

- Conheci a garota mais linda da praia! Aliás, mais linda do mundo!
- Pegou?
- Praticamente...
- Não beijou!?
- Quase - engasguei.

Fui pra casa e não parei de pensar em Lindaura. Estava perdidamente apaixonado e não via a hora de voltar à praia.

No terceiro dia, entre um salto e outro, Jonahtan reparou Lindaura vindo ao meu encontro. Aproximou-se dela e deu os melhores saltos que sabia. Jonahtan voava e eu ia me afundando na areia ao perceber o encanto nos olhos dela. Com Jonahtan não houve "quase" nem "praticamente".

Por isso, planejei matar Jonahtan. Comecei apenas fantasiando, como se fosse um filme policial, depois aquele rancor foi tomando uma dimensão e saindo do meu controle. A fantasia ia se transformando em um plano perfeito. Um não, três.

Tudo deveria parecer acidental, eu era medroso demais para enfrentar uma investigação policial, e o amor declarado por Lindaura já entregaria a minha culpa. O primeiro era simples, maquinado com a participação de uma cobra perçonhenta que haveria de ser colocada na sua cama durante o sono. Fiquei atento e esperei pacientemente até encontrar a minha terrível arma. No fundo da Igreja Matriz havia muitas pedras e mato e era comum as cobras mostrarem a cara. Um dia, voltando pra casa, ouvi um farfalhar de folhas sêcas e encontrei uma cobra coral. Era perfeita. Peguei a serpente com uma forquilha de cabo longo, com um medo do mesmo tamanho da minha determinação. Guardei o bicho em um cesto e levei à noite para o quintal da casa de Jonahtan, que dormira cedo como de costume. A janela estava aberta, as noites eram muito quentes naquela época do ano. Passei delicadamente a forquilha pela janela e, posicionando a cobra sobre a cama, sacudi e deixei a coral cair ao seu lado. Corri como um louco, mergulhei na minha cama arfando e não dormi até a fatídica notícia vinda da minha mãe:

- Apareceu uma cobra ontem na cama de Jonahtan. O coitado levou um baita susto, mas a coral era falsa.

Eu tinha que saber da ordem das listras, eu tinha que entender algo mais das cobra. Mas taturana é bicho legítimo, não há no mundo imitação. E esse foi o segundo plano. Uma semana depois da falsa coral, à noite, postei uma taturana bem gorda no sapato daquele desgraçado.

No outro dia, eu já estava certo de precisar colocar o meu terno escuro. Jonahtan caiu de febre, mas, como era forte, saiu-se incólume e ainda gozou dos cuidados carinhosos de Lindaura.

O terceiro plano foi o mais perverso. Numa ensolarada tarde de sábado, quando costumávamos lanchar na praça, na venda de Seu Brito, bati manga misturada com leite e escondi na mochila. Me ofereci para entrar e pegar o nosso lanche e, sem que ninguém percebesse, troquei o suco pelo veneno. Foi um serviço vil e ardiloso, eu sei. No entanto, suspeitei que além de tudo Jonahtan devesse ter o corpo fechado. Ele não apenas nem se abateu como se deliciou com a iguaria.

Por isso que, depois desse dia, resolvi desistir da criminosa empreitada. Jonahtan haveria de perceber as minhas tentativas, e, se na sua ira resolvesse revidar, haveria de ser também um assassino mais competente que eu.


Obs: A foto foi tirada em Itaparica e me deu uma inveja danada por não saber voar.