sábado, 22 de agosto de 2009

Bicho (Série: Uma Foto por um Conto)



A vida mudou muito quando a fábrica chegou. Antes todo mundo se conhecia, se cumprimentava e se entendia como bons vizinhos. No início, a vinda da fábrica foi até bem vista. Traria renda e ocupação para muitos moradores que já esgotavam o que ainda restava pra se fazer na cidade. Mas a fábrica trouxe mais do que isso, trouxe pompa e um povo da capital.

Finalmente, a pequena cidade crescia e prosperava e Miguel acompanhava o bom momento. A sua quitanda passou a vender muito e logo virou um mercado respeitável. Miguel até reformou a casa e comprou um carro.

Para o bom quitandeiro tudo ia muito bem até a chegada de uma rede de Supermercados da capital. Supermercado é um lugar no qual se vende de tudo e, como uma erva daninha, não deixa coisa nenhuma crescer em volta. E acabou Miguel fechando as portas do seu respeitável mercado.

Depois que vendeu o carro para quitar as dívidas, sua vida começou a desmoronar. Marta havia se acostumado à fartura, não resistiu e foi morar na capital com um fotógrafo que tinha passado por lá para mostrar a fábrica numa revista. Foi uma paixão arrebatadora. Arrebatou o coração de Marta e metade do que restava dos bens de Miguel. Restou-lhe a boa companhia da cachaça.

Como os pobres diabos que beijam a sarjeta já não combinavam bem com a vida que se levava na cidade, Miguel passou de quitandeiro a uma praga, uma sarna, menos que um cachorro, um bêbado esmolambado. As distintas senhoras voltavam da igreja e o praguejavam, as crianças o cuspiam vez em quando.

Se ainda alguém conseguisse sentir um pingo de compaixão, esta luz se apagou quando Miguel passou a conversar com Traíra, um cão sarnento que dormia embaixo do banco da praça. Aquilo já era demais!

Um dia, porém, uma notícia correu a cidade: Miguel acertara no bicho três vezes seguidas. E em uma delas descolou um milhar na cabeça. Ferreira, comovido com a estranha sorte de seu compadre, carregou ele pelo braço do banco da praça até a sua casa:

- Vamos Miguel, você não pode ficar assim, compadre. Vou levá-lo à sua casa.

Fez um café forte, disse algumas palavras de apoio, aconselhou que arranjasse outra mulher que o merecesse, e chegou ao assunto que interessava:

- Vê-se que ainda é um homem de sorte. Deus está olhando por você. Esse negócio do bicho aí, por exemplo... Como é que se explica isso? - Ferreira deixou escapar uma faísca dos olhos.

- Ih, Ferreira... isso não foi sorte não, e muito menos Deus. Foi dica de Traíra. Aquele cachorro é danado de esperto!

- Como é que é, meu compadre? O cachorro te disse?

- Juro pela minha falecida mãe!

A mulher de Ferreira era Dona Neilza, a boca mais descontrolada e descontraída da cidade. Por isso mesmo, no outro dia o cachorro não teve sossego. Era só vagar o banco da praça, sentava-se alguém desconfiado, tentando se certificar de não haver outro por perto, tirava um naco de carne seca do bolso para atrair o pulguento e começar o interrogatório.

A noite, lá estava Ferreira arrastando o bêbado Miguel pelo braço até sua casa.

- Miguel, você precisa parar de beber. Veja por exemplo essa loucura de que cachorro fala. O povo já anda comentando. Podem querer até te jogar num hospício. O cachorro não fala nada, Miguel!

Muxoxou e respondeu com a língua embolada pela cachaça:

- Não fala nada com gente sóbria. Quanto mais eu bebo, mais o danado se desboca. Parece que é desses boêmios que respeita quem bebe e a quem não bebe não liga a mínima, acha que a prosa é sem alma.

Quando Ferreira deixou a casa, Miguel cuspiu o café amargo e gargalhou de chorar.

Na noite seguinte, chegou o vigário às quedas na igreja. Não fosse amparado pelo coroinha, se arrebentaria nas escadas do adro:

- Aquele desgraçado do Traíra é mesmo o cão, não é cachorro! Insiste só em falar com o bebum, xilado e corno do Miguel! Eu sou padre, puta que o pariu, mereço maior atenção!

OBs: Ando com o tempo curto para escrever.

sábado, 8 de agosto de 2009

Futebol (Série: Uma Foto por um Conto)


Embora tivesse uma enorme dificuldade de negar um pedido do meu pai, meu avô jamais iria ceder aquela porção de terra para um reles campo de futebol. Por isso, resolveu inventar que ali era um lugar amaldiçoado, que aquele terreno, perto do Iguape, havia sido um cemitério de escravos.

A região é cheia de morros e encontrar uma área tão plana pra um campo com as dimensões profissionais era muito difícil. Ali era perfeito. O único campinho da vila dava pra seis de linha, e olhe lá!

Neneca, meu pai, aos 13 ou 14 anos insistiu muito, mas meu inexorável avô continuava com a história do cemitério pra meter medo e fazê-lo desistir. Tio Ceceu, o melhor amigo do meu pai, medroso como era, encasquetou com aquilo e disse que era melhor mesmo ficar sem campo de futebol. Deus o livrasse de ter que jogar bola sobre um lote de defuntos.

Eu não conheci bem o meu avô. Quando morreu, eu tinha apenas 6 anos e ainda morávamos na fazenda, o que manteve conservada a sua imagem nas minhas lembranças. Tudo o que eu vivi na Santa Inácia parece ter ficado gravado eu um filme na minha memória. É só eu desejar, que vejo o filme novamente. Mas eu quase nunca desejo.

Meu pai, ou Seu Neneca (como era conhecido na vila), assumiu a fazenda e resolveu realizar o velho sonho de fazer o campo de futebol no terreno do Iguape. Tio Ceceu fazia faculdade de medicina, mas ainda achava ser loucura jogar bola em terra de mortos. Preferia duvidar do meu pai, que dizia ser invenção do meu avô, do que do velho a quem ele sempre respeitou muito.

- Deixa de besteira, Ceceu! Acreditar nas sandices do meu pai!? Ele dizia isso pra nos fazer desistir do campo. Vais acabar virando um doutor bestão!

E Seu Neneca fez o campo e um campeonato inaugural, com a participação do prefeito, de oito times da região e da filarmônica da sede municipal. Foi uma festança.

O campo era um espetáculo. Meu olhos brilharam ao olhar a primeira vez para aquele retângulo verde cana, forrado de capim de burro, espraiado entre os morros e coroado pelo lagamar do Iguape, que ficava atrás do gol. Acho que naquele dia nasceu a minha persistente idéia de ser jogador de futebol. Dali por diante, passei mais tempo naquele campo do que dentro de casa. Virei um craque, entrei pra seleção da vila. Eu e Juninho, meu irmão caçula.

Meu pai nunca escondeu sua preferência por Juninho entre os 3 filhos. Talvez pelo fato de ser o caçula, ou talvez por ele ter carregado o seu nome. O velho Manoel era orgulhoso. E ainda que eu fosse muito melhor atacante do que Juninho era zagueiro, meu pai sempre dizia que o time só ganhava pela atuação dele. Eu tinha um certo ciúme, mas Juninho sempre fora um irmão tão carinhoso que eu acabava aproveitando os afagos do meu pai para também enchê-lo de elogios.

Dez anos depois da inauguração, chegamos a mais uma final de campeonato. Foi no dia 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, que é certeza de muita chuva. E, como era de se esperar, choveu. Choveu muito, mas o jogo se deu assim mesmo. No segundo tempo, zero a zero, um relâmpago fulminante fez Juninho cair. Um avanço do destino adversário que o nosso zagueiro não conseguiu parar.

Passei vinte anos sem falar com Tio Ceceu. Uma semana depois do relâmpago, ele me disse que o meu avô estava certo. Meu pai, não falou com mais ninguém. Morreu triste, pouco tempo depois, encolhido numa culpa apoiada em suposições fantasiosas de que nunca deveria ter feito aquele campo. A vila entendeu o recado e fez o que as vilas costumam fazer em situações como essas: criou um mito sobre o "campo maldito". E ninguém voltou a jogar ali, até hoje.

Neste mês, voltei à fazenda. Depois de um bom tempo morando na capital. Vim fazer um favor a Juninho e a Seu Neneca. Visitei Tio Ceceu, conversei com o velho, lembramos histórias do meu pai, rimos e tomamos cachaça. Contei-lhe dos meus planos de reativar o velho campo. Mandei construir arquibancadas de madeira e chamar o prefeito, a filarmônica e todo o povo para mais um campeonato de futebol.

Em uma pequena vila como aquela, os mitos são como traços da sua identidade e da sua história. Não cabe a mim contestar qualquer que seja, ainda que uma crendice. Mas aquele tinha um sabor amargo de derrota pra mim. E eu havia de aproveitar o descaso do tempo com a superstição pra resgatar a alegria da minha infância, da infância de Juninho, do meu pai e de todos que chutaram uma bola sobre aquele gramado.

Amanhã é o grande dia.

Obs: A foto foi tirada em Santiago do Iguape, um lugar absolutamente lindo.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Inveja (Série: Uma Foto por um Conto)


Eu e Jonahtan nascemos no mesmo dia. E acho que essa foi a única coisa que tivemos em comum.

No nome já somos muito diferentes. Chamo-me Mariosvaldo, um desses nomes híbridos dos desejos mal resolvidos dos pais. Jonahtan, chama-se Jonahtan, o que, em si, já é uma vitória esmagadora da personalidade dele sobre a minha. O nome dele é dos Estados Unidos, o meu é Mariosvaldo, de lugar nenhum.

Crescemos juntos, mas não proporcionais. Eu sempre fui mais baixinho e franzino e Jonahtan parece ter freqüentado academia desde o útero da sua mãe. Sempre teve o corpo bem definido, proporcional, com uma agilidade felina, rápido e elegante.

Eu até pensei que a vida devia equilibrar as pessoas dividindo um pouco as suas qualidades, e que, portanto, eu deveria ser melhor em matéria de inteligência. Mas me enganei. Na escola, as notas maiores eram dele. E todas as namoradinhas, por consequência.

Chamava tanto a atenção para si que, na cidade, a mim dirigiam-se:
-Aquele é o amigo de Jonahtan. - Melhor assim, eu não gostava mesmo do meu nome.

Desde garotos, íamos sempre à praia nos feriados. Enquanto eu torrava lambuzado de areia, o meu antonímico companheiro praticava capoeira em saltos espetaculares que chamavam a atenção das garotas. E foi assim que eu conheci, me apaixonei e perdi Lindaura.

Lindaura era um anjo. Eu a vi primeiro. Jonahtan nem a notou. Eu tropecei ao vê-la, ela riu, brincou comigo, conversamos, rimos juntos e ela viu apenas a mim no primeiro dia.

No segundo dia, nos reencontramos. Rimos, chupamos picolés, fizemos brincadeiras de jovens enamorados. Eu me sentia como se o mundo fosse mais seguro, como se eu tivesse toda a vida sob controle. E foi por isso que, na saída da praia, resolvi descontar todas as diferenças entre mim e Jonahtan em uma só tacada.

- Conheci a garota mais linda da praia! Aliás, mais linda do mundo!
- Pegou?
- Praticamente...
- Não beijou!?
- Quase - engasguei.

Fui pra casa e não parei de pensar em Lindaura. Estava perdidamente apaixonado e não via a hora de voltar à praia.

No terceiro dia, entre um salto e outro, Jonahtan reparou Lindaura vindo ao meu encontro. Aproximou-se dela e deu os melhores saltos que sabia. Jonahtan voava e eu ia me afundando na areia ao perceber o encanto nos olhos dela. Com Jonahtan não houve "quase" nem "praticamente".

Por isso, planejei matar Jonahtan. Comecei apenas fantasiando, como se fosse um filme policial, depois aquele rancor foi tomando uma dimensão e saindo do meu controle. A fantasia ia se transformando em um plano perfeito. Um não, três.

Tudo deveria parecer acidental, eu era medroso demais para enfrentar uma investigação policial, e o amor declarado por Lindaura já entregaria a minha culpa. O primeiro era simples, maquinado com a participação de uma cobra perçonhenta que haveria de ser colocada na sua cama durante o sono. Fiquei atento e esperei pacientemente até encontrar a minha terrível arma. No fundo da Igreja Matriz havia muitas pedras e mato e era comum as cobras mostrarem a cara. Um dia, voltando pra casa, ouvi um farfalhar de folhas sêcas e encontrei uma cobra coral. Era perfeita. Peguei a serpente com uma forquilha de cabo longo, com um medo do mesmo tamanho da minha determinação. Guardei o bicho em um cesto e levei à noite para o quintal da casa de Jonahtan, que dormira cedo como de costume. A janela estava aberta, as noites eram muito quentes naquela época do ano. Passei delicadamente a forquilha pela janela e, posicionando a cobra sobre a cama, sacudi e deixei a coral cair ao seu lado. Corri como um louco, mergulhei na minha cama arfando e não dormi até a fatídica notícia vinda da minha mãe:

- Apareceu uma cobra ontem na cama de Jonahtan. O coitado levou um baita susto, mas a coral era falsa.

Eu tinha que saber da ordem das listras, eu tinha que entender algo mais das cobra. Mas taturana é bicho legítimo, não há no mundo imitação. E esse foi o segundo plano. Uma semana depois da falsa coral, à noite, postei uma taturana bem gorda no sapato daquele desgraçado.

No outro dia, eu já estava certo de precisar colocar o meu terno escuro. Jonahtan caiu de febre, mas, como era forte, saiu-se incólume e ainda gozou dos cuidados carinhosos de Lindaura.

O terceiro plano foi o mais perverso. Numa ensolarada tarde de sábado, quando costumávamos lanchar na praça, na venda de Seu Brito, bati manga misturada com leite e escondi na mochila. Me ofereci para entrar e pegar o nosso lanche e, sem que ninguém percebesse, troquei o suco pelo veneno. Foi um serviço vil e ardiloso, eu sei. No entanto, suspeitei que além de tudo Jonahtan devesse ter o corpo fechado. Ele não apenas nem se abateu como se deliciou com a iguaria.

Por isso que, depois desse dia, resolvi desistir da criminosa empreitada. Jonahtan haveria de perceber as minhas tentativas, e, se na sua ira resolvesse revidar, haveria de ser também um assassino mais competente que eu.


Obs: A foto foi tirada em Itaparica e me deu uma inveja danada por não saber voar.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Desvio (Série: Uma Foto por um Conto)

Vejam vocês como a razão se perde nessa louca atividade humana a que chamamos futebol. Ele está nos meandros da inteligência, driblando sempre que ameaça se chocar com qualquer traço da lógica. E é por isso que, de Drummond a Damatta, sempre tem alguém querendo dar-lhe a classe de filosofia ou poesia. De razão, bem em verdade, o futebol não tem quase nada. Aliás, aproxima-se muito, mas muito mais mesmo da loucura. O que explica o desvio de Malengo.



José Antonio Araújo da Silva, Malengo por alcunha, era dali mesmo, do Pelourinho. Já havia sido sapateiro, vendedor de jornal, de fita do Senhor do Bonfim, de colar e de quase tudo que é badulaque comercializado por aquelas bandas.

Além daquela enxurrada de turistas repletos de aparelhos eletrônicos e luzinhas que piscam efluindo pelas ruas de pedra do bairro, sua vida era torneada por simplicidades. Poucas coisas, bastantes para o que Malengo resolveu que era a felicidade: a religiosa cervejinha, uma mulher amável, os amigos e o futebol. E uma coisa que não se podia contestar naquele rapaz era a sua honestidade.

Seu grande amor pelo futebol resumia-se em um clube, o Bahia. Do qual era o que se costumava chamar de torcedor doente, seja lá o que isso signifique. Embora fosse louco por Maryelice, o Bahia era o Bahia.

Maryelice era pintora. Vendia quadros no Pelourinho. Passou mal e quase desmaiou quando ouviu no rádio a trágica notícia sobre um desastre ocorrido em um jogo com o desabamento de uma parte das arquibancadas da Fonte Nova, e pressentiu que um dos mortos era Malengo.

- Que diacho que mulher tem mania de pressentir tudo! Gente como a porra, ia morrer logo eu? -
Malengo ainda festejava a vitória do time sem perceber que a angústia de Maryelice era mesmo um prenúncio da sua desgraça, que começava a acontecer naquele exato momento.

Ocorreu que aquela tragédia fora o motivo da aposentadoria do velho estádio. O seu clube não tinha mais local pra jogar dentro da cidade, o que reforçou a crise no futebol e afastou Malengo da sua grande paixão. A privação pesou-lhe a vida, vivida com tão poucos eleitos suficientes.

Até que um dia, o grande momento esperado: a inauguração de um novo estádio na cidade. Malengo acordou confiante. Vestiu a camisa do time colorindo ainda mais aquela manhã cintilante do Pelourinho.
- Meu docinho, minha vida, o estádio agora é vinte conto. É trinta em jogo bom que nem o de hoje...
- Meu nêgo, eu trabalho como a porra pra dar dinheiro pra você ver futebol?
- Não é futebol, neguinha, é o Bahia!
- Ôxe, e o Bahia é o quê?
- É minha paixão, igual a você! Já pensou se eu não venho te ver?
- Tenho não, Malengo. Me deixe trabalhar!
- Puta que o pariu, meu Deus!

Foi atrás do que lhe restava, o trabalho como vendedor. O dia foi passando e percebeu que o dinheiro não ia dar. Malengo foi tomado por desespero.

Ao cair da tarde, transtornado, viu uma bolsa de uma turista descuidada sobre a mesa de um bar e resolveu que esse jogo não ia perder.

Malengo correu até um beco. Cansado, olhou os cinquenta reais amassados na mão suada e trêmula e tomou um tapa da culpa que o fez sentar. Levantou aturdido e andou sem sentido por algum tempo. Foi ao encontro de Maryelice, segurou sua mão e chorou pelo único desvio que seu caráter lhe concedeu, sob a tutela de um amor incondicional, bastante para desmoronar-lhe a vida.


A Foto é lá no Pelourinho mesmo. De uma pintora desses típicos quadros do Pelô e um torcedor do tricolor de aço na preguiça (do torcedor e do time).

domingo, 5 de julho de 2009

Maçã (Série: Uma Foto por um Conto)


Maurício era advogado. Trilhou uma carreira diferente do pai, jornalista e distante da mãe, dona de casa. Maurício cresceu querendo ser advogado e não parou mais de querer crescer, o que de certa forma o desconectou da própria infância.

Estudou numa escola particular, uma das mais caras da cidade, ao custo de um esforço desmedido do pai para lhe dar uma educação de qualidade. Ali, Maurício decidiu o seu caminho. A ascensão social foi o que sempre lhe encheu os olhos, desde os primeiros dias da sua vergonha adolescente pela brasília velha e enferrujada buzinando na hora da saída.

Com muita determinação conquistou entre outras coisas o tão almejado acesso à alta sociedade. Naquela sedutora e pequena parcela de pessoas sobre a face da terra, transitava com desenvoltura e era respeitado. Neste meio, conquistou a maioria dos seu clientes e os recentes amigos. Perdeu o contato com os amigos da infância na velha rua de pedra do bairro da Ribeira. Cabeça, Baleia, Cueca e Ratinho já não passavam de apelidos dissolvidos numa memória anuviada dos babinhas com traves de sandálias havaianas.

A sua determinação lhe rendeu um bom apartamento em um bairro nobre da cidade, diferente, muito diferente da rua da sua infância. Tinha uma belíssima namorada. Mais nova, modelo, sempre presente nas colunas sociais.

A vida parecia-lhe domada, e Maurício sorria de alguma forma. Estava retesado na trilha que sempre desenhou nos seus sonhos, sem se desviar, sem olhar pra trás e sempre avante.

Um dia, amigos o convidaram para um passeio de veleiro numa famosa regata que penetra a Baía de Todos os Santos até a cidade de Maragojipe. Uma cidade que, como tantas outras do recôncavo baiano, transitou da bonança à inércia sem nunca perder a alegria, a pureza e nem os traços do seu passado.

O passeio foi bom. O barco era luxuoso e Maurício, orgulhoso, tirava fotos de Sabrina, sua namorada, aproveitando a belíssima paisagem que se estampava a cada curva que o barco cindia no meio das faixas de terra da Baía de Todos os Santos. Até que Maragojipe surgiu, sem convencer a si mesma de ser destino final.

O desembarque era disputado entre as canoas que se ofereciam para levar os turistas ao cais. Do cais partiam rústicas carroças, puxadas por jegues e destinadas a levar passageiros e bagagens aos modestos hotéis locais. Aos amigos de Maurício, tudo era pitoresco e engraçado. Maurício, ao contrário, parecia estar um pouco aturdido naquele dia. Nada era divertido e seu sorriso já estava difícil. Parecia estar enjoado, não com balanço do barco, mas com os excessos daquela paisagem e daquelas pessoas tão alegres sem nenhum motivo aparente.

Quando começou a anoitecer a estranha angústia já incomodava Maurício. Em um parque, no centro da cidade, uma barraca de maçãs-do-amor o atraiu. Talvez pelo vermelho vibrante e pelo brilho da casca corada de açúcar, desejou a maçã mais do que tudo. "Você vai comer isso?" - Perguntou Sabrina. Maurício não ouviu. O ranger das engrenagens enferrujadas nos velhos brinquedos lhe aturdiam ainda mais. O que sentia naquele momento o fez lembrar uma noite na qual ardia de febre aos cuidados da sua mãe. Seu corpo, sem peso algum, em um vazio conturbado, como no olho de um furacão.

Maurício mordeu a maçã-do-amor. A cidade, os amigos e a paisagem se dissolveram junto ao açúcar caramelado e ao sumo da maçã. O sabor amargo desapareceu e ele se viu flutuando em um nada preenchido por sons retumbantes transformados das velhas engrenagens. O doce se transformou em infância. Uma a uma começaram a surgir as coisas que realmente preenchiam aquele vazio: cadeira da roda gigante, um balão em formato de golfinho, uma criança sorrindo na varanda.

Maurício compreendeu naquele momento que, por maior que fosse, ainda seria insignificante, e a maçã-do-amor lhe mostrou o reverso da grandeza nas pequenas coisas. Findo o delírio, uma lágrima escapou dos seus olhos tristes.

Obs: A foto foi mesmo em Maragojipe, na noite após a regata, mas não por Maurício.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

A Cor do Lugar (Série: Uma Foto por um Conto)


O Coronel Antunes ainda não havia se adaptado à situação. Aliás, nunca se adaptaria. Era fato consumado: os negros estavam no direito de livre escolha. A sua fazenda era uma das únicas que ainda tinha escravos quando a liberdade se fez lei. E ex-escravos vagavam nos arredores, consolidando os seus quilombos, que já tomavam ar de vilarejo.

O Coronel precisou recomeçar a vida da fazenda e decidiu que não ia dar um só tostão a nenhum negro metido a assalariado. Fez das suas terras um reduto de brancos, filhos dos portugueses mais puros que conseguiu reunir- ainda que seja este povo já tão miscigenado. De qualquer forma, os negros estavam renegados naqueles confins.

Na sede do município, a verdade já se fazia. Os negros com sua alforria, coloriam a cidade e aquilo dava a atacar a gastrite do Coronel. O colorido daquele povo, seus tecidos em azuis e amarelos vibrantes, colares de contas de todas as cores, sorrisos reluzentes em lábios vermelhos, cores vivas por toda a praça da matriz. Por conta daquela imagem, decidiu Antunes abolir da sua fazenda, a cor. Só era permitido o vermelho massapê e o verde canavial. Todas as outras coisas tinham que ser esmaecidas, como que vencidas pelo tempo, num eterno inverno rancoroso. Dizem que até o céu por lá ficou cinza ou de um azul desmaiado.

E assim viveu a fazenda, que virou povoado, vila, cidade. Nunca houve cores vivas por lá.

Sem que aquela gente se desse conta, a vida por ali foi mudando. Sem o vermelho, o laranja, o amarelo, sem o azul gritando e o lilás, o máximo que as pessoas que ali viviam conquistavam era um gostar muito morno de um pelo outro. A paixão foi morrendo aos poucos, e o amor se fez insosso entre o povo daquela pequena cidade.

Mas, um dia, Seu Eulálio descobriu a causa da angústia que a tanto tempo lhe assolava. Estava sofrendo porque ardia de paixão por Dona Catarina. O sentimento não cabia mais na paisagem contida e Seu Eulálio achou que ia explodir como uma partícula no vazio, ocupando, em pedaços, toda aquela atmosfera. A cidade sem cor não suportava a sua paixão radiante e poderia ser aquele o último dia de um amor eterno.

Chegou desconfiado, mas, decidido. Sentou-se como de costume ao lado de Catarina, suava frio como as cores da vida ao seu redor. Tirou de dentro do peito um maço de pétalas amassadas do que fora outrora uma rosa vermelha.

Ouviram-se tambores ressoarem na cidade naquela cândida tarde.


Obs: A foto foi tirada em Mato Grosso, distrito de Rio de Contas, na Chapada Diamantina-BA (uma cidade com cores vivas o suficiente, aliás). Na verdade, achei que fossem camaleões se escondendo de um entruso com uma máquina fotográfica.

Mas há um fundo de verdade no conto. Mato Grosso manteve por muitos anos seus descendentes sem relações com o povo quilombola de Barra e Bananal. O lugar se tornou um museu étnico vivo.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Apenas Fogo (Série: Uma Foto por um Conto)


Chegou no Rio de Janeiro no verão. Foi visitar uma tia.

Sinésio tinha pouca graça. Era baixo, um tanto desproporcional, mas naquela noite, num bar em Copacabana roubou um sorriso faceiro da cabrita mais formosa que já tinha deitado os olhos. Cabelo vermelho, mas vermelho mesmo daquele jeito, jamais tinha nem ouvido falar em Juazeiro.

Ainda de espírito acanhado pelo corno que levara de sua futura ex-mulher, Sinésio ficou sem jeito. Mas seu coração parecia um bode amarrado. Acabou sendo arrastado pelo olhar encapetado, aquela pele alva e aqueles cabelos vermelhos. E se perdeu Sinésio, na noite de Copacabana.

De manhã, pão com margarina molhado no café e uma cara de abestalhado, feliz como nunca:
- Minha tia Jurema, acho que vou morar aqui no Rio. Vou casar com uma moça que conheci aqui.
- Mas, Sinésio! Já não basta o corno de Juliana, você já vai se entregar pra uma moça assim de primeira noite? Ainda mais aqui do Rio!
- Minha tia, ela me ama, ela disse com todas as letras que mê-é-mé, a-mê-a-má!

Na tarde desde novo dia na vida de Sinésio, um passeio romântico ao Pão-de-Açúcar. O cabra da alma renovada e a moça do cabelo vermelho. Uma beleza aquele mar, aquilo tudo, aquela moça. Sinésio achou que estava no céu, abriu seu coração e pediu a ruiva em casamento.

- Puô cara, qualé? Pirou?
- Mas você disse que me amava!
- Puô cara, aê: era só fogo.

Sinésio, aperreado, olhou aquela imagem da moça ao sol e viu, num lampejo, seu cabelo de fogo lamber o Cristo Redentor. Perdido em beleza sem fim, passou-lhe a certeza da mensagem que havia recebido. Aquilo tudo era um chamado de Nosso Senhor.

Sentiu o vento frio no seu peito gelado, deixou o corpo pender e morreu consumido pelas chamas.


Fotografia tirada no Cristo Redentor, em janeiro de 2009 - a moça do cabelo vermelho é por mim desconhecida. Por Sinésio, tão pouco

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Inteligência é uma Questão de... de Formiga

Alguma coisa acontece no meu coração, só quando cruzo a ACM com a Tancredo Neves. E eu já estava mesmo bem mais perto de um infarto que de um êxtase de realização profissional ou qualquer coisa ao menos parecida.

Se faz algum sentido este infame cotidiano dos meus concidadãos metropolitanos, alguém me explica então qual o sentido da vida, os graus de complexidade estão ali, ó, tête-à-tête.

Há algum tempo mudei de local de trabalho. Encurtei uma distância de 25Km ou mais, que eu dobrava no exercício de ida e volta. Cinquenta e lá vai quilômetros diários recheados de trânsitos, estresses, buzinas e muito, muito tempo de traslado. Aliás, agora praticamente zerei a minha distância e estou indo trabalhar a pé. Em um mês rejuvenesci mentalmente 1 ano. O corpo ainda não, a distância é curta para eu chamar a caminhada de exercício físico.

(pausa para ver o vídeo)



Companheiros e companheiras façam suas escolhas, sejamos formigas ou cigarras. Na plenitude do que cada um desses insetos tem a oferecer. Uma coisa, outra coisa ou outra ainda que não atrapalhe a harmonia, por favor.

As cigarras, por exemplo. Esses homopteros vivem do que a terra lhes dá e passam a vida cantando com um propósito básico de se acasalar. O que, em outras palavras, também significa Os Novos Baianos da Década de 70.

E as formigas? A sabia Marquesa de Rabicó, a Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo, a mesma que deu um sabão no führer Adolf Hitler (que deu pena), resolveu reformar a natureza inteira mas se recusou a mudar um grão sequer no modus operandi das formigas. Para ela, tudo estava na mais completa correção na vida destes pequeninos seres.

Ora, vejam bem que essas daí sabem muito mais do que qualquer arquiteto urbanista ou engenheiro bem estudado. Constroem uma cidade completa, com estações, ventilação, calefação, sem aperreios. E, juro, se shopping center fosse algo realmente bom para a vida de qualquer ser vivo, não faltaria no formigueiro.

Isso sem falar na prática agropecuarista. As formigas aprisionam os pulgões e os estimulam a produzir licôr. As criaturinhas também cultivam alguns cogumelos, indoor.

Ah, como parecemos estúpidos diante das formigas. Quando elas invadem nossas casas pra comer do nosso açúcar, devem nos olhar como aos pulgões. Ainda bem que ainda não cabemos nos seus formigueiros. E, eis que essas criaturas sabem muito mais sobre o sentido da vida do que pensamos saber, com toda essa parafernália metafísica que só nos deixa ainda mais confusos.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A Sombra


E ainda me persegue, como sombra, idéia fixa de um caminho que perdi em algum momento passado.


"Acho que a sombra é o único ser vivo que se avista por lá"(...)"bem que poderia ser mais esperta e entrar na casa para me contar o que viu" - Disse o sábio antes de ver a sua sombra pela última vez, sobre a janela da misteriosa casa em frente. Depois veio a saber que aquela era a casa da poesia. (A SOMBRA -"Skyggen"- Hans Christian Andersen, 1847) 

E, então, em conversa com Do Céu, o beabá da leitura em internetês:

 16:12:36: Beleza ??
  16:13:23: Beleza!
  16:13:26: Que conta?
  16:15:12: aquele blog q vc mandou vou ver com calma depois...qual é a ideia?
  16:17:49: A idéia do Blog? Sei lá!
  16:18:12: Ir colocando umas coisas que surgirem no cabeção
  16:18:44: Nenhuma pretensão não... Só exercícios mesmo
  16:19:15: bacana po!
  16:19:20: valorizo a ideia
  16:19:41: Então coloca alguma coisa lá nos posts depois!
  16:19:52: Ando com insônia
  16:19:52: ah! demoro
  16:19:59: aproveita!
  16:20:02: Hehe
  16:20:20: '
  16:20:43: E que a gente vai deixando umas coisa pra trás, vai ficando um pouco escravo do pragmatismo. E (que nem o conto de Andersen), vai deixando a sombra do que você era presa em algum lugar. Aí, tô querendo reavivar algumas coisas.
  16:21:58: q loco isso hein
  16:22:08: esse da sombra nao conhecia
  16:22:08: Por exemplo: gambiarrei um cabo pro contra-baixo
  16:22:14: aeeeee
  16:22:16: Vou tentar voltar a estudar
  16:23:10: não gostei do "tentar"!
  16:23:21: essa frase nao precisa dele
  16:23:32: É
 

(fotografia tirada em cachoeira, da janela de um casarão, em um seminário sobre Identidade Quilombola)